Miss Simpatia


Em um mundo onde concursos de beleza são questionados por usarem beleza como critério para eleger miss, Fernanda Montenegro, eleita imortal da Academia Brazuca de Letras (ABL), é só mais uma imortal efemeridade que será esquecida ano que vem. Alguém se lembra do Sarney? Não lembro nem quem eram os Fiscais do Sarney, que dirá quem sãos os tais Marimbondos de Fogo, um livro de poemas tão inesquecível que até o Roberto Marinho deve ter esquecido de ler. Logo ele, que também ocupou cadeira na ABL.

Até que a ABL escolheu bem, já que quando você premia literatura que não existe, pouca coisa pode dar errado, portanto não há erro a eternizar. E depois, há um imortalizado déficit de meninas na ABL, então mais uma respeitável e distinta decana para florir a casa é uma boa estratégia no clima atual, onde o protocolo exige imortalizar mulheres apenas por serem mulheres.

Verdade seja dita, beleza nunca foi critério para escolha de miss, já que as meninas levam pontuação em vários outros critérios além da aparência nos concursos badalados, dinâmica que pode ser observada no filme Miss Simpatia, comédia com a imortal, mas já acabada, Sandra Bullock. Verdade seja dita também, o que temos de imortal é Machado de Assis, e exímia literatura nunca foi exatamente o imortal critério da ABL. Ainda que existissem exímios literatos brazucas em número disponível para imortalizar, iriam se eximir de culpa e agraciar o que é mais vistoso, sem grandes dores na consciência. Se funciona em Hollywood, serve para Brazilwood, Kikito?

Se o Woody Allen não aprendeu português para ler seu livro no original, você não atende meu critério de imortal da literatura brazuca, mas critério de imortalidade é que nem opinião: cada um lamenta a dos outros. Eu estou na fila para virar imortal também, pois para entender meus trocadilhos e neologismos intraduzíveis, só no original. Até já vi gente pensando em traduzir meus textos para curitibanês, mas desistiu. Óbvio que isso não vai funcionar nunca. Sou intraduzível para qualquer idioma, inclusive o português. Só o que me falta é o Woody ler meu livro. Falta o livro também, mas enfim, estou quase lá, pelo menos de acordo com o meu critério. 

Essa tara por fabricar imortalidade é recente, não tem mais do que alguns milênios. A revista Guitar Player, para citar um exemplo antigo, todos os anos publicava edição com o maior guitarrista de todos os tempos do ano. Hoje não tem mais isso pois o mito do guitar hero, assim como a própria mitologia, faleceu. É a morte dos imortais, o que não deixa de ser um evento mitológico. Enfim, a mítica e imortal Guitar Player tem, ou tinha, que vender revista. A ABL tem que se vender também. Até eu tenho que me vender, pois se você não se vende, ninguém te compra.

Possivelmente sou o autor mais intraduzível de todos os tempos, então imortalizei minha obra e entrei para a história. Todos nós seremos imortais à nossa maneira um dia, mas o truque consiste em realizar a mágica antes de ir pro cúmulo. A morte é mesmo o cúmulo, o cúmulo da sacanagem, então ninguém tem muito interesse em virar imortal depois de morrer, algo que Van Gogh não entendeu melhor do que qualquer um de nós. 

Essa análise, líquida das abobrinhas, é o mínimo que esperaria encontrar em um periódico de grande circulação há não muito tempo, mas, por razões que entendo bem, ela não pode estar lá. Não esperaria menos que isso do Luís Fernando Veríssimo no seu auge, por exemplo, mas os tempos são outros. Da última vez que me confrontei com Veríssimo, meu conterrâneo, eu era nada além de um aprendiz. Agora, ele é o mestre, o que significa que, se ele me matar, vou me transformar na coisa mais morta que ele é capaz de imaginar. Mestre é sempre mestre, e os nossos serão sempre imortais, mesmo sem jamais terem sentado a bunda em qualquer cadeira.

O primeiro ato de Fernanda Montenegro ao sentar a bunda foi criticar a demonizaçâo da cultura. Distinta a madame. Alguém em sua sentada posição não pode emitir qualquer parecer além do protocolar. Assim como as misses quando são eleitas, está agora obrigada a eximir-se de certos comportamentos mundanos dos não eleitos. É por isso que nasci para ser Skrotinho. Protocolo pra mim é só só um colo em formação.

Não demonizo ninguém, mas sou possivelmente um dos últimos em uma longa linhagem de capetinhas que jamais aceitariam entrar em um clube para o qual fossem convidados. Esse é o problema do mundo hoje, rapidamente se transformando em uma Academia Planetária de Letras onde somos eleitos contra a vontade, extirpados de nossa mundanidade e condenados a protocolar. Honre a sua linhagem. Quando ela se for, você vai.

E por só é hoje. Fui.

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