Shelley e o Monstro

 

O periódico The Sun está zoando snowflakes¹ por concluírem deslumbrados que o monstro de Frankeinstein, embora um assassino, era na realidade uma vítima incompreendida com sentimentos. Receber o apelido de geração floquinhos é ser vítima de bullying, mas o bullying é merecido, já que não só são compreendidos, como não têm sentimentos, têm neuroses esquizofrênicas. As únicas coisas das quais são vítimas é de amnésia histérica, digo, histórica, e padrão asno falante de raciocínio, capacidades que empregam para pagar mico e sinalizar virtude, coisa que fazem com frequência. 

Ora, ninguém nunca achou que o monstro de Frankenstein não fosse uma vítima. Nesse romance de terror de 1818, ele é rejeitado por seu criador, Victor Frankenstein. Só o que o monstro queria era ser amado, ter uma família, mas a sociedade o temia por sua monstruosa feiúra. Pobre monstro, era um incel. Em desespero com a dor da rejeição, torna-se violento, mas no fim decide isolar-se do mundo no Pólo Norte. Victor o persegue na tentativa de matá-lo, mas morre antes de conseguir, e a criatura chora copiosamente a morte de seu criador, a única família que conheceu. Monstro sim, mas com coração nobre.

A mítica história de Frankenstein é de autoria de Mary Shelley, filha de ninguém menos que Mary Wollstonecraft, a mana master ancestral da luta pelos privilégios das mulheres. A temática do monstro incompreendido, temido, mas de coração nobre, entretanto, foi usada algumas décadas antes na fábula da Bela e a Fera. O conto original é de Gabrielle-Suzanne Barbot (1740), mas tornou-se conhecido na versão de Jeanne-Marie LePrince de Beaumont (1756), ambas mulheres. Isso é muita coincidência, então não deve haver outra. No, there's another (Yoda, 1980).

A temática do monstro de alma nobre foi imortalizada na filosofia por outra mulher: Simone de Beauvoir, a própria. No Segundo Sexo (1949), Simone gasta considerável tinta analisando a psique dos monstrinhos, embora não esconda sua fascinação por eles. Homens, segundo a filósofa, escaparam da sua condição de animal primitivo por meio do controle dos elementos, e transcenderam sua própria natureza. É esse poder masculino de transcender a si, em essência, aquilo que Simone admira nos homens e deseja para mulheres. You have that power too (Skywalker, 1983). Não poderia querer outra coisa, pois Beauvoir é uma filósofa existencialista, e você não é um existencialista se não for obcecado pelo tema da transcendência da natureza humana. Não se nasce monstrinha, torna-se.

Escuro que você já sabia, posto que é karnalmente óbvio, que Frankenstein só podia ser uma história de menina. O monstro é um homem na visão de Mary Shelley, uma construção de retalhos de outros homens. Temida e incompreendida, só o que criatura deseja é ser amada e ver garantido seu direito de existir. A fera de bom coração é possivelmente a maneira como mulheres visualizam homens desde sempre, e não é necessário um PhD em história para entender a razão. Tal coisa, entretanto, é passado. Estamos agora em uma outra era. Em Mordor, do topo da Barad-dûr, o olho de Sauron nos vigia, e legiões de Orcs peludas se multiplicam como uma praga pestilenta espalhando o terror pela Terra Média. 

A despeito dos esforços para aniquilá-lo, o monstro de Frankenstein sobrevive. Odiada e incompreendida, a criatura se vinga, e nos define em nossa tentativa de defini-la enquanto esvanece em direção ao Ártico em busca de refúgio, por temer aqueles que a temem. Frankenstein é um clássico, uma narrativa capaz de atravessar eras. Mary Shelley transcendeu sua condição de animal primitivo ao imortalizar-se em sua obra, mas o mesmo não pode ser dito a respeito das legiões de Orcs peludas. Resta saber, nesta hora sombria, por onde andará Gandalf agora que precisamos dele. 







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