Neutralizando


Neolinguagem é a prova de que estamos entrando em um mundo totalitário, mas também a oportunidade de entender como o totalitarismo se forma, como ele emerge no tecido social para no fim produzir seus efeitos. Esperanto foi uma tentativa de neolinguagem universal. Criada por Ludwig Lazar Zamenhof por volta de 1887, a ideia era criar um idioma de nacionalidade neutre que todos os povos aprenderiam para poder se comunicar. A iniciativa foi um fiasco, já que ninguém aderiu. Inglês já é a língua planetária neutra consagrada pelo uso comum, então basta aprender inglês e você se defende em qualquer lugar. Não é necessário aguardar nenhuma iniciativa forçada e burocrática de converter o mundo para o esperanto, pois já existe o esperanto do uso comum. 

Uso comum, por falar nisso, é um dos argumentos que vamos ouvir de novilinguistas. A língua é mutante, e se altera pelo uso comum, portanto devemos aderir à neolinguagem. Isso é uma falácia, já que uso comum é fabricado, como a expressão já diz, pelo uso comum. Quando um grande número de pessoas passa espontaneamente a utilizar certa construção, aparecem os linguista para passar a régua, reconhecer aquela realidade adulterada como usual e declará-la como forma correta da língua. Não é o que novilinguistas querem, já que sua novilíngua é uma construção porcamente fabricada por razões ideológicas e pretende se consolidar na linguagem via tacape ou mesmo decreto legal, onde o falante é convidado a alterar seu discurso sob pena de bullying social ou mesmo sanção legal, como já está ocorrendo em alguns países. Temos então a metamorfose da língua via mecanismo Orweliano: estamos todos livres para aderir ou sofrer as consequências. 

Alterar a língua por razões ideológicas já é uma excrescência, mas fazê-lo por razões ideológicas sustentadas por mentiras e desconhecimento da língua é mais excrescente ainda. Na época dos fenícios era usual o pronome vossa mercê, que depois foi reduzido pelo uso para vossemecê, em seguida vosmecê, você, e finalmente cê. Este último, em uso por paulistas, ainda não foi consagrado na língua formal, mas orra, meu, cê sabe que eu não sei onde cê vai parar se cê continuar encolhendo?

Vossa mercê era tratamento cerimonioso usado para substituir o tu, uma frescura de almofadinhas do centro do país com certeza, já que no sul, uma terra sem frescura, você é tu, portanto você é algo que sulista usa com naturalidade somente na língua escrita, por natureza mais formal que a comunicação falada. Por que alguém teve a ideia de tratar a segunda pessoa como terceira pessoa com fim de parecer empolado é provavelmente algo que nem mesmo linguistas sabem, mas a hipótese que com certeza podemos descartar é que isso não emergiu na linguagem com fim de propagar preconceito contra segundas pessoas. 

É possível que isso tenha surgido como forma de sinalizar distanciamento físico. O interlocutor é distinto, então você o trata na terceira pessoa como forma de reconhecer que não é íntimo daquele a quem se dirige. Como você, por adulteração, perdeu o sentido literal da forma original via amnésia linguística, hoje sinaliza intimidade, portanto não usamos você se queremos sinalizar formalidade. Evidente que, para novinlinguistas, a única explicação possível para termos palavras no masculino para nos referir a mulheres é preconceito de gênero, uma teoria que não faz sentido algum quando observamos que o inverso também ocorre. Como o binário de gênero usual da língua não sinaliza o que novilinguistas afirmam, não faz sentido adotá-lo nem para sinalizar inclusão do feminino, nem para sinalizar inclusão dos restantes 70 gêneros, especialmente porque todos eles já são fabricados como neutro, endereçável pelo gênero neutro, ou com declinação para um dos binários, portanto endereçáveis por pronomes masculinos e femininos. 

Mais excrescente ainda é verificar que novilinguistas não são linguistas, não são nem mesmo uma junta de experts na academia que se reúne para decidir padrões, como é o caso das alterações oficiais rotineiras da língua portuguesa, mas sim, uma junta de lunáticos anônimos que atua por meio de autoridade autoproclamada e reconhecida em lugar algum. Como resultado, temos um sem número de imbecis inventando que estão estabelecendo padrões. Não só nenhum deles entende o que está fazendo, como não se entendem entre si, então o resultado é que no futuro não haverá como saber se você é ou não transfóbique, já que cada novilinguista amador tem sua própria versão da novilíngua que pretende implementar via tacape. Em outras palavras, estamos vivendo em um mundo retardado povoado por dementes que acham que são o Grande Irmão. Andy Warhol previu em 1968 que no futuro todos teriam 15 minutos de fama, então como essa já foi, o que podemos esperar é que no futuro todos seremos Big Brother por 15 minutos com fim de satisfazer os anseios autoritários das massas e democratizar via milagre tecnológico desconstruído o direito de ser totalitário.

Na imagem vemos novolinguistas rendendo-se à realidade de que o que define o gênero muitas vezes é o pronome, algo que começaram a fazer recentemente após entenderem finalmente que continuam não entendendo o que estão fazendo, já que o amadorismo é evidente. Muito não está neutralizado, já que não é usual a construção muita bonita, um erro bastante comum de falantes não nativos da língua. Como na frase muito bonita o advérbio de intensidade é masculino, se queremos ume língue realmente neutre e coerente, o gênero tem que ser sinalizado como neutro. História e casa não estão neutralizados. Idem com celular e doente, que são masculinos, mas sinalizam gênero neutro. Temos que neutralizar, então decreto por meio da minha autoridade linguística pessoal que o correto é celulare e doenti, e quem não concordar é transfóbique, machiste, fasciste e sexiste.

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