Redação Balzaquiana


 Minha redação sempre foi medíocre. Eu tinha conteúdo, ideias, mas minhas notas baixas me pareciam ser algum ardil dos professores de português, que teimavam em não reconhecer meu valor ao me reduzir a fórmulas acadêmicas bestas. Já tinha um curso superior quanto pretendi tentar vestibular para Computação na Federal, sabia que meu nível de redação era inservível para conseguir uma vaga, mas não sabia como resolver o problema. Lembrei-me então de Sócrates, do só sei que nada sei. Movido pelo espírito do filósofo, decidi enterrar a ideia de que eu sabia algo sobre escrever e humildemente me entregar, me deixar guiar pelas bestas e seus tecnicalismos esnobes.


No cursinho pré-vestibular, minha professora de redação era uma Balzac de trinta e poucos anos. Bonita, inteligente, culta, charmosa, desinibida, extremamente articulada, ela era tudo o que um franguinho nerd como eu precisava para ficar de piu-piu duro. Como era muita areia para o meu caminhão, é claro que eu nem queria nada com ela mesmo. Estava envolvido em uma missão impossível socrática em busca de conhecimento, determinado a conseguir uma vaga na Federal. Evidente que se ela arrastasse um milímetro de asa para cima de mim, aí que se dane o Sócrates. A vaga estaria perdida, mas com certeza eu iria gabaritar a redação. 

Com uma professora daquelas me dando aulas particulares, meu domínio da língua e da caneta com certeza iria atingir um novo patamar, mas não foi preciso. Consenti que ela me deflorasse em aula mesmo. Conquistei a vaga, que foi conseguida com uma redação que por pouco não obteve nota máxima. Graças a Sócrates, Platão e à minha professorinha gostosa, minha redação se desfigurou. Saí da sólida e incontornável mediocridade para ingressar no terreno da performance convincente. O amor, ainda que seja platônico, é capaz de operar milagres. O que defini como convincente está anos-luz de onde estou hoje, então fico curioso para saber que nota minha professorinha me daria agora. Certamente não nota máxima. Mulheres são assim mesmo, impossíveis de satisfazer.

Você faz e pensa em tudo que elas pedem: conectores, encadeamento, fluxo ordenado de ideias, cadência, redundância como recurso de estilo, redundância como erro de estilo, etc. Essas coisas sempre soaram para mim como música. Na teoria musical, por exemplo, notas dissonantes são notas erradas, mas se você sabe qual é a nota errada, pode fazer de um erro um acerto notável. Afinal, transformar notas em coisas notáveis é algo a ser notado quando lidamos com notas musicais. Por falar em notas e conectores, note que transportei você do texto às notas musicais sem que você sequer notasse o que estava havendo. O encadeamento não se deu apenas com palavras, mas com sentido. Uni grãos de areia ao cintilar da noite por meio de linguagem metafórica. Metáforas são amálgamas entre duas entidades concretas que juntamos com uma cola imaginária.

Encadeamento é o que fazemos com notas dissonantes. Inserimos uma pimenta inesperada no momento exato para depois conectá-la a um docinho no tempo certo, em tempo de nos salvar do naufrágio: introdução, tensão, conclusão. Há uma cadência, e dentro da cadência, há uma história. O resultado é mais do que ligar pontos, o efeito conseguido é uma cor. Não é um colorido do tipo que se vê, mas do tipo que é possível ouvir. Arte é por natureza sinestésica. Para qualquer dos nossos sentidos, onde há algum sentido, aquilo pode ser sentido. Isso é o que entendemos por redundância metafórica de fluxo (RMF). Essa tal de RMF é algo que inventei agora, foi projetada para não significar absolutamente bosta nenhuma, mas é bonitinho mesmo assim, possui ao menos apelo estético. Belo, mas sem moral. 

Para o artista, sentido pode ser fabricado até mesmo onde não há nenhum. É necessário que seja assim, pois é isso que um artista faz: criar, extrair do vácuo algo que não estava ali. David Bowie, que era um artista, disse que envelhecer é tornar-se aquilo que deveríamos sempre ter sido. Tornar-se é a palavra que não sublinhou, mas o faço agora, pois viver é isso, um conectar o que nos precede com o que está por vir através do que é presente em um fluxo coordenado e logicamente coerente de eventos com significado. É uma cadência. 

Bowie concluiu a si em 10/01/2016, tornando-se para sempre o que já deveria ter sido ao nascer. Faço aqui o mesmo com este texto. Transformo-o no que deveria ter sido desde o início em seu parágrafo inaugural. Se não acredita em mim, é só voltar lá e checar com seus próprios olhos, já que com os meus é que não haverá de ser. Inspecione o quanto quiser, pois não verá coisa alguma. Como todo nascimento, aquele trecho é uma mágica, um truque de ilusionismo. O parágrafo que escrevi primeiro na realidade foi este. Onde você está é onde este texto surgiu. É para onde estava indo o tempo todo e onde sempre deveria ter estado, mas eu fiz o que todo mágico faz, que é desviar sua atenção para longe do local onde vai rolar treta. 

Nada mais havendo a concluir, o que me resta é isso: concluir. Aqui jaz um texto sobre textos, vestibulares, Computação, filósofos, balzaquianas, amores platônicos, sons, cores, sabores, David Bowie e nostalgia. Fez o que todo texto deveria fazer: nasceu, viveu e descansou.

Para os corajosos que conseguiram se arrastar até aqui, deixo linkado de bônus ao final um retrato. É um instantâneo de um período dissonante da minha vida, que sucedeu meu primeiro casamento e precedeu o segundo. Aquele momento de tensão inesperada foi, embora eu só fosse descobrir isso depois, meu ápice. Naquele exato instante eu me tornei aquilo que sempre deveria ter sido. Tornar-me aquilo que vou ser é o que ainda estou fazendo, mas como não consigo mais crescer para cima, agora só cresço para os lados. Como toda dissonância bem encaixada, ela existiu como se não estivesse ali, e seu real significado só pode ser entendido depois que ela se foi.

Esse é também o momento onde minha paixão por fotografia estava nascendo. Olhando esse quadro hoje eu finalmente consegui decifrar o mecanismo que fabrica as minhas paixões: todas invariavelmente nasceram da primeira, a mais arrebatadora de todas, que foi a música. Paixão é uma droga pesada. O viciado busca na próxima dose o que viveu na primeira, mas sem sucesso. É o inverso do caminho citado por Bowie. Perseguir uma nova paixão é como tentar voltar no tempo caminhando para o futuro. É uma tentativa de progredir não para aquilo que sempre deveríamos ter sido, mas aquilo que um dia fomos, com fim de magistralmente concluir, enfim, renascidos.



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